X CONGRESO INTERNACIONAL DE ANTROPOLOGÍA FILOSÓFICA
Teruel, 14-17 de Septiembre de 2010
MENTE Y CUERPO.
PARA UNA ONTOLOGÍA DEL SER HUMANO
COMUNICACIONES
Sección comunicaciones 1B
“Antropología filosófica e Historia de la Antropología”
Coords.: Elena Monzón (Univ. Sevilla); Jacinto Choza (Univ. Sevilla); Juanjo Padial (Univ. Málaga).
9,30 h. – 11,30 h.
Salón de Actos Vicerrectorado
-Adalberto Dias de Carvalho (Universidade do Porto)
A antropologia é, talvez, a
disciplina mais difícil de definir sob a aparência de ser a que tem o objecto
de estudo mais evidente: o Homem. Desde logo porque se a perfilharmos como uma
disciplina filosófica, em lugar de estudo, falaremos de reflexão e, em vez de
objecto, tenderemos a escrever problemática. E a verdade é que quando na história
das ideias pareciam culminar as antropologias científicas, estas confrontam-se
com os limiares da sua própria cientificidade e a reemergência da vitalidade da
abordagem filosófica. Agora não tanto pela premência da pergunta kantiana ”que é
o Homem?” mas, antes desta, pela interrogação sobre o humano. Interrogação
tornada urgente mais por questões éticas ligadas à história recente da
humanidade do que por simples imbróglios epistemológicos.
Na
realidade, fenómenos históricos como o Holocausto colocaram a dúvida sobre o
estatuto do humano quando, de um modo trágico, no seu próprio âmago
surpreendentemente se insinuou o inumano. Mais ainda, surge a dúvida se, após tão
traumáticos acontecimentos, quando se impõe a urgência do humano, este humano
será alguma vez possível.
Porém,
se o inumano desestabiliza, pela sua sistematicidade e cruel intencionalidade,
os fundamentos do humano, noutras vertentes, a pobreza, a fome e, de uma forma
geral, as injustiças sociais geram a frente do que poderemos chamar o desumano
(ele próprio tendencialmente inumano). Relativamente ao inumano, distingue-se
apenas por uma diferença de intensidade na linha da concentração histórica.
Contudo, o desumano desdobra-se no quotidiano com uma normalidade que convoca
por isso mesmo a cumplicidade. O inumano – quando percebido - provoca
rupturas quase que pelo estrondo de um remorso colectivo; o desumano –
enquanto eco de um fatalismo proclamado ou implicitamente admitido - alastra-se
em complacentes continuidades.
Mas
acresce ainda a consciência do sobre-humano, seja, na esteira de Nietzsche,
pela promoção colectiva da capacidade criativa e intempestiva de um Homem que
se encontra transcendendo-se, seja pela curiosidade em torno de indivíduos
sobredotados que desafiam a normalidade. Entretanto, alguns dos próprios
produtos do génio humano, designadamente a nível da robótica, podem
constituir-se pelo seu refinamento, ainda que para já num plano dominantemente
ficcional ou especulativo, como potenciais ameaças à própria genialidade.
Em
todos estes casos e com estas categorias, constata-se que a ideia de uma essência
humana, adquirida enquanto fundamento do humanismo e, com ele, das reivindicações
éticas em nome da dignidade humana, sofre um rude golpe. É que a decisiva negação
do humano não se encontra tanto no seu exterior, fora de limites definidos,
convidando a correspondentes atitudes de demarcação e de defesa, mas irrompendo
antes do seu próprio interior e enchendo de dúvidas os protagonistas das
certezas que o suportaram e cristalizaram.
Se
encararmos igualmente os desafios das próprias ciências, rapidamente observamos
também que não há mais uma fronteira nítida entre o humano e o animal ou entre
aquele e o natural, os quais tradicionalmente se opunham. Primeiro o
evolucionismo e depois a etologia, a neurobiologia e a paleontologia encheram
de perplexidades todos quantos julgavam que, sobre as rupturas originárias do
criacionismo da antropologia bíblica, assentavam irrevogáveis e intransponíveis
descontinuidades que garantiriam – ou teriam garantido – aquelas
oposições. Mais ainda, o humano representava a justificação e a mais alta
finalidade do mundo. Tido como referência, o humano marcava o topo de uma
hierarquia que legitimava a subalternidade de todos os outros seres. Dos
animais, da natureza ou dos que eram olhados – e catalogados – como
sub-humanos.
Sendo assim, como
reivindicar um espaço para a antropologia quando são destruídos os parâmetros
que traçavam os seus contornos? Questão difícil até porque, com ela, se invoca
uma circularidade que encerra no interior da sua recorrência termos – e
conceitos - estatutariamente tão diversos como o de antropologia em si mesmo e
o de humanismo. Eis o problema: será que só há antropologia se houver um
humanismo que preserve ideologicamente o cerne do humano enquanto reduto
indiscutível?
Esta é, no fundo, a grande
questão que, do lado da crítica filosófica, desde Heidegger, declaradamente nos
perturba, designadamente a partir do momento em que este filósofo considerou
que o humanismo decorrente do esquecimento do Ser e da afirmação do
Homem-sujeito é responsável, através da omnipotência da técnica, pela própria
destruição do sujeito que a protagonizou. Ou seja, se a glorificação do humano é
abalada pela corrosão que epistemologicamente sofre a noção de sujeito com a
cruzada que, de um modo ou de outro, lhe foi sendo dirigida pelo
estruturalismo, a verdade é que é a partir do seu próprio apogeu que, com
Heidegger, se minam os seus fundamentos e o seu poder. Ou até mesmo, apesar de
Heidegger e desde Descartes e Kant, com as fissuras com que os dois grandes
patronos do humanismo moderno marcaram o estatuto originário desse
Homem-sujeito.
Porém, o nosso ponto de
vista é o de que, quando a antropologia parece definitivamente ameaçada, em vez
de proclamarmos a sua destruição, estaremos finalmente em condições de anunciar
a sua urgente e auspiciosa redefinição. Agora já não de uma antropologia que
pressuponha e tenha como finalidade a autocracia do Homem, mas de uma outra
que, reconhecendo os limites deste, os considere como seu apanágio e sua
identidade em prol de uma acção que, respeitando-os, não os encare como a
simples e nefasta dimensão negativa de um ideal.
Em nosso entendimento, é a
aliança entre a antropologia e o humanismo que propicia e suporta historicamente
o carácter triunfante e algo megalómano daquela. Por outras palavras, a
antropologia – primeiro sob a forma de uma filosofia do homem - emerge
das convicções humanistas que vão progressivamente cimentando os privilégios do
Homem e, com eles, um antropocentrismo que, eclodindo na modernidade, vem sendo
esboçado desde muita antes.
Aqui, a leitura
heideggeriana do itinerário humanista é esclarecedora…
Com efeito, na crítica que o
filósofo alemão faz da história da metafísica ocidental, quase logo nos seus
primórdios é surpreendida a valorização da perspectiva subjectiva sobre a
centralidade do Ser. Daí a aproximação estreita que virá a ser apontada entre
humanismo, metafísica e platonismo, aproximação tornada possível desde que a
essência da verdade é encarada como residindo na subordinação da aleteia à ideia. Fenómeno que transparece da alegoria da caverna, em que a
verdade passa a estar indexada ao olhar e ao seu correcto direccionamento. É
neste contexto, aliás, como salienta Heidegger (cf. “La doctrine de Platon sur
la vérité”, trad. franc., in Questions II,
Paris, Gallimard, p. 160), que surge a paideia
enquanto formação do homem, entendido como animal rationale, precisamente com a finalidade de proporcionar-lhe
a capacidade de que “o olhar dirigido para as ideias possua uma excelência
especial”.
Num
outro curso – Kant e o problema da
metafísica (trad. franc. :Kant et le
problème de la métaphysique, Paris, Gallimard, 1953) – Heidegger é ainda mais claro nesta crítica do
antropologismo, ao aprofundar a ideia de uma ontologia fundamental que constitui, aliás, uma das pedras de toque
de O ser e o tempo. Mostra então como
a metafísica especial do humano remete para a metafísica geral do ser, impondo
a precedência da abordagem ontológica sobre o conhecimento ôntico que seria em última
instância o que caracteriza o enfoque antropológico dominante, nomeadamente o
filosófico, ao ficar prisioneiro das perspectivas das antropologias científicas
que persistentemente olham o homem como um ente. A questão não deverá ser,
pois, a do ente enquanto tal mas a do ser. Daí que “a compreensão do ser que
domina a existência do homem (…) se manifeste desde então como o fundamento
primeiro da sua finitude” (op.cit.,
p. 284). Daí decorre também a afirmação de que “mais original do que o homem é
nele a finitude do Dasein (idem, p.285). Daí decorre finalmente que
“se o homem não é homem a não ser pelo Dasein
nele, a questão de saber o que é mais original do que o homem não pode ser,
por princípio, uma questão antropológica” (idem,
pp. 285-286). A ontologia fundamental revela-se então como a primeira etapa da
metafísica do Dasein.
Com
base nestes pressupostos, Heidegger não hesita em proclamar que, se é um facto
que nenhuma época como a nossa acumulou tantos e tão diversos conhecimentos
sobre o homem, é igualmente verdade que “nenhuma época soube menos o que é o homem” (idem, p. 266). Neste quase cepticismo
relativamente à euforia do cientismo antropológico, Heidegger retoma
expressamente as reservas de Max Scheler, o qual, em A situação do homem no mundo (trad. franc., Paris, Aubier, 1979, p.
20), exclama, por seu turno, que “nunca em nenhuma época da história como hoje
em dia, o homem foi tanto um problema
para si mesmo”. Scheler tem em vista, por um lado, os objectos das
antropologias científica, filosófica e teológica que não nos dão, em sua opinião,
uma ideia de homem que tenha unidade e, por outro, as numerosas ciências do
homem que, independentemente da sua importância, ocultam a sua essência mais do
que a iluminam. Se, em Heidegger, com a revisão do percurso kantiano, a
finalidade era a de construir uma antropologia
pura de natureza ontológica como forma de ultrapassar as contradições e as
limitações constatadas naquele percurso, em Scheler encontramos a vontade
expressa de abrir caminho à afirmação da originalidade da situação metafísica
do homem. E se a originalidade do homem residirá, para Heidegger, como já
vimos, no facto de ele se caracterizar por estar marcado pela “finitude no mais
íntimo do seu ser” (op. cit., p.273),
isto significa que as célebres questões colocadas por Kant na Crítica da Razão Pura – Que posso
saber? Que devo fazer? Que me é permitido esperar? -, questões sobre o poder, o
dever e o esperar, em vez de representarem uma afirmação da centralidade do
Homem, atestada pela derradeira questão – Que é o homem? – para que
remeteriam e, no fundo, em vez de serem uma afirmação da sua capacidade para
procurar superar uma finitude acidental, evidenciam antes a implicação e uma
concentração da razão humana na própria finitude: “não se trata portanto para
ela (para a razão humana) de eliminar o poder, o dever e o esperar, e assim de
afastar a finitude mas, pelo contrário, de se assegurar desta finitude a fim de
nela se manter” (idem, ibidem).
Afirma-se
assim a radicalidade da finitude humana, radicalidade que confere ao homem a
sua própria singularidade entre os outros entes. Com efeito, ele é o único que
busca a compreensão do ser, a qual, dominando a sua existência, “é o que há de
mais finito no finito” (idem, p. 285).
Ora, se “o homem não é homem a não ser pelo Dasein
nele”, situação de que decorre a referida compreensão do ser que define a
essência da sua existência, a verdade é que, longe de tal representar a
generalidade banal de uma propriedade entre outras, traduz precisamente “o carácter
geral do fundamento primeiro da finitude do Dasein”
(idem, ibidem), da compreensão do
ser, que, entretanto, terá caído no esquecimento ao longo da história da metafísica
ocidental. Contudo, como também vimos já, não estaríamos mais perante uma questão
antropológica, mas antes de um acto ontológico
que alude a uma precariedade constante inerente à própria finitude do Dasein. Pertencendo e estando por isso
exposto ao ser, o homem é também o que há de “mais inquietante”, o que significa
que só o apreendemos através dos “limites extremos e os abismos abruptos do seu
ser” (cf. M. Heidegger, Introduction à la
métaphysique, p. 156). Importa, neste contexto, percebermos que “compreendemos
o inquietante como o que nos rejeita para fora da “quietude”, quer dizer para
fora do íntimo, do habitual, do familiar, da segurança não ameaçada”, ou seja,
o homem é aquele que “sai, se escapa, aos limites que primeiro lhe são
habituais e familiares” (idem, pp.
157-158).
Esta
óptica procura demarcar-se da que, na sequência de um humanismo indelevelmente
marcado pela própria história da metafísica, ignorou que o homem não é o “senhor
do ente” mas antes o “pastor do ser”. Terá dado lugar a uma antropologia que,
ainda segundo Heidegger, designa a “interpretação filosófica que explica e
avalia a totalidade do ente a partir do homem e na direcção do homem” (“L´époque
des conceptions du monde”, in Chemins qui
ne mènent nulle part, trad.
franc., Paris, Gallimard, 1962, p. 84), colocando-o numa posição de domínio dos
entes com recurso nomeadamente à ciência e à técnica.
Assim, principalmente em função
da ciência e da técnica que entronizam o homem como sujeito do ente, o
humanismo legitima a humanização do mundo a que estas procedem, movimento em
que, paradoxalmente contra a humanidade do homem, acabará por capturar e
delapidar a sua própria singularidade ao convertê-lo em objecto de conhecimento
e de acção. Ou seja, como ele nos recorda na Carta sobre o humanismo, (trad. port., Guimarães Ed., Lisboa, 1987,
pp. 54-55), “pensa-se contra o humanismo porque ele não instaura a humanitas do homem numa posição
suficientemente alta”, repousando antes “no facto de ele ser a substância do
ente como sujeito” e incentivando mesmo a sua diluição na objectividade olhada
como a entidade do ente. Se Heidegger valoriza aqui a dimensão ontológica da
relação com o Ser, um autor como Peter Sloterdijk (cf. Règles pour le parc humain, Paris, Mille et une Nuits, 2000 e La domestication de l’Être, Paris, Mille et une Nuits, 2000),
pensando “com Heidegger contra Heidegger”, sobreleva a natureza antropológica
do “hiper-nascimento” da humanidade que permite que esta tome consciência do
mundo e dela mesma, ultrapassando o estádio de animalidade que a enclausurava
no Ser… Aliás, também Ricoeur chama a atenção para o facto de que a noção de preocupação (Sorge) aparece como o fundamento da antropologia filosófica de Ser e Tempo. Tal na medida em que o Dasein, inserido no quadro do ser-no-mundo que é igualmente um si, “supõe a totalidade de um mundo que é
o horizonte do seu pensar, do seu fazer, do seu sentir – em síntese, da
sua preocupação” (Soi-même comme un autre, p. 360). Aliás,
o ser do mundo é apresentado como o correlato do ser do si porque não há um
mundo sem um si que nele se encontre e nele aja.
Como se verifica, em todo
este debate em torno do estatuto da antropologia filosófica, ao emergir a
problemática do humanismo, com ela, aflora implicitamente a questão do sujeito.
O que nos obriga a penetrar na história do seu delineamento sobretudo no
contexto da modernidade. É, aliás, extremamente curioso que a afirmação da
antropologia filosófica ocorra, na modernidade, num contexto de reconversão do
próprio estatuto do sujeito e do próprio humanismo, em ambos os casos por referência
à problemática do limite.
Montaigne e depois Pascal
desempenharam nesta viragem um papel pioneiro que tem de ser sublinhado. Isto
quando o primeiro, em pleno século XVI, imbuído de um profundo cepticismo que
contrasta com o precedente optimismo renascentista, critica as pretensões do
homem – caracterizado como uma “miserável e insignificante criatura” - em
ocupar o centro do universo; o segundo, no séc. XVII, retomando as reservas do
autor dos Ensaios, identifica
precisamente a fragilidade do homem quando, na sua solidão existencial, este se
confronta com a grandeza de Deus ou da Natureza ou, talvez melhor, com a ameaça
da sua ausência, e pergunta nos Pensamentos
(Pensées, Paris, Pocket, 2003, p.
174-175): “O que é um homem, no infinito?” e, mais adiante: (…) “o que é o
homem na natureza?”, para, logo de seguida responder: “Um nada em relação ao
infinito, um todo em relação ao nada, um meio entre o nada e o todo,
infinitamente afastado de compreender os extremos: o fim das coisas e os seus
princípios estão para ele escondidos num segredo impenetrável”. O homem,
situado entre o infinitamente pequeno e o infinitamente grande, não pode
delimitá-los pela razão e pelo conhecimento: fica no meio…O homem terá de
assumir a sua insignificância existencial.
Esta veemente contenção de Montaigne
e de Pascal contrasta com a exuberância narcísica do romantismo de Rousseau, o
qual, nas Confissões, proclama sem
rebuços a sua excepcionalidade – “Je
forme une entreprise qui n’eut jamais d’exemple, et dont l’exécution n’aura
point d’imitateur” –, sem prejuízo de acabar por admitir uma
perfectibilidade precária, diversa do optimismo teleológico iluminista. Pascal
refere-se à proposta de Montaigne, nos Pensamentos,
como “le sot projet qu’il a eu de se
peindre”. Já Voltaire, nas Lettres
Philosophiques, considera-o como “le
charmant projet que Montaigne a eu de se peindre naïvement» …
Constata-se, pois, no
cepticismo dos discursos de Montaigne e de Pascal, que o sujeito moderno se
esboça na confrontação com a consciência dos seus limites (que Rousseau, apesar
de tudo, ao denunciar o carácter constrangedor da sociedade, acaba por não
contrariar) e, portanto, com a circunstância de ele ser o limite do seu ser
enquanto ser humano. Por outras palavras, o sujeito configura-se no próprio
movimento de confrontação com os limites que ele encontra em si. É desta
actividade radical, apesar de tudo simultaneamente crítica e construtora do
sujeito, que decorrerá o travejamento inicial da postura problemática do
humanismo moderno que, retirando o sujeito das garantias cosmocêntrica e teocêntrica
tradicionais, o colocará diante do risco da solidão de si mesmo e das suas
vulnerabilidades.
Já Pico della Mirandola, na
sua celebrada Oratio escrita nos
finais do séc. XV, embora perguntando “quem deixará de admirar o homem?”,
defende a ideia de uma plasticidade ontológica
de que decorrerá a afirmação não tanto de um lugar privilegiado a ocupar por
aquele na hierarquia da Criação, como o postulavam os medievais, mas antes da
liberdade – e do privilégio - de se poder tornar naquilo que ele fizer e
quiser construir. Reconhece-se assim ao homem o exercício de uma liberdade
através da qual se constitui afinal a sua dignidade. Se há uma excelência que é
atribuída e reconhecida ao homem, há também, com certeza, uma iniludível
vulnerabilidade que é, em última instância, uma ameaça de fracasso e de solidão.
Ora, Descartes tentará
superar esse risco que é um veio da filosofia humanista – do humanismo
tornado filosofia - com o recurso a Deus que surge então, na sequência da dúvida
hiperbólica, como o garante da sua autenticidade ontológica e existencial.
Recurso que de alguma maneira não deixará também de atestar de novo os limites
constitutivos desse mesmo sujeito que, finalmente, tem de se socorrer de Deus
para assegurar a certeza da verdade das suas intuições e representações. Na
realidade, não é tanto o infinito que habita o sujeito mas tão-somente a ideia
desse infinito, a qual atesta, por dedução lógica, a sua existência. Por seu
turno, este último – o infinito, Deus -, precisamente pela autonomia
entitativa da sua densidade ontoteológica e da sua transcendência, pode, em última
instância, legitimar radicalmente desde logo essa mesma ideia e, deste modo,
eliminar a radicalidade conexa da dúvida hiperbólica, a qual, no fundo, a
subsistir, destruiria a possibilidade do cogito
se instituir como sede da verdade.
Socorrendo-nos das aturadas
análises de Ferdinand Alquié, designadamente das que ele desenvolveu na obra La découverte métaphysique de l’homme chez
Descartes (Paris, PUF, 1951), confirmamos o sentido destas nossas reflexões
quando este autor escreve (p. 180): “Se o ser do homem é primeiramente
descoberto como o ser desta negação que é a dúvida, nenhuma ideia fechada,
limitada, análoga a uma ideia física ou matemática, o conseguirá exprimir: também
o cogito das Meditações se define por uma perpétua remissão para outra coisa,
remissão para a substância, para o eu, para Deus”. E mais adiante (p. 237)
conclui: “Situado na separação dos dois planos - o do conhecimento e o ontológico
–, constituindo esta mesma separação, o homem tem já, como em Pascal, a
sua grandeza da consciência da sua finitude”.
Este homem, que é o homem
moderno, virá a ser, todavia, um herói ao ter uma consciência plena de esperança
que faz dele uma superação da natureza – e de si -, mas sem nunca alcançar
a superação do Ser, o mesmo é dizer, nestas circunstâncias, de Deus… Quando
muito, ele terá subalternizado a problemática onto(teo)lógica em proveito da
antropo(teo)lógica, entronizando-se como um Deus a construir justamente por
saber que não o era…É o homem que, em nome da sua liberdade e do seu sentido de
justiça, procura Deus, recusando obedecer, sem mais – e sobretudo sem (a)
razão –, a um Deus que antecipadamente estipularia os seus princípios éticos.
Assim a “humanização de Deus” de que nos fala por exemplo Luc Ferry (cf. L’homme-Dieu ou le sens de la vie,
Paris, Grasset, 1996, p. 61), diferentemente de correr em paralelo com a “divinização do humano” (idem, ibidem), decorre desta ou, talvez melhor, consuma esta no entrelaçamento
da ideia de Deus com a utopia do humano, ambas produtos de uma
razão que não lhes retira a transcendência.
A laicização do mundo é acompanhada de uma secularização das
certezas e da afirmação da autodeterminação do homem como prerrogativa e dever.
São estes os ingredientes do desenvolvimento da ideologia enquanto consciência
individual e colectiva que promove a acção política e a intervenção do homem
sobre a história, reivindicando-se ele como autor do seu destino. Porém, como
nos recorda G. Larochelle (Philosophie de
l’idéologie, Paris, PUF, 1995, p. 54), «a descoberta da omnipotência da
subjectividade confronta-se ao mesmo tempo com a da sua finitude trágica”, isto
é, o seu projecto debate-se com o seu contexto, ou, se se quiser ainda, o seu
poder encontra-se com o seu limite que é, afinal, o limite da sua capacidade de
objectivação e do homem enquanto “destinador e destinatário da objectivação”,
fenómeno paradoxal de que decorre o próprio limite do “humanismo como
instrumento da historicidade”.
Na
verdade, desde que o sujeito (sujeito que constitui a categoria antropológica
central do homem da modernidade) é reconhecido como o depositário de uma consciência
individual que lhe outorga a excepcionalidade de uma coincidência consigo
mesmo, característica que lhe confere a sua própria identidade, que o homem
escapa ao processo de objectivação, sendo antes o seu responsável. Considera
Foucault em Les mots et les choses
que as ciências humanas porão fim a este estado de coisas precisamente quando,
nomeadamente pelas mãos da psicanálise, procuram tornar o próprio homem objecto
do seu estudo. Parte então Foucault para uma crítica da ontologia do sujeito
tradicional recorrendo, contudo, para o efeito, a uma ontologização dos
processos da linguagem onde acabam por tomar forma as funções da
subjectividade, apesar da aparente crítica e até negação do homem-sujeito a
partir da sua célebre tese da “morte do homem”. Claro que Foucault procura
fazer abalar as filosofias do sujeito e a coincidência, constatada ou
tendencial, que estas propugnam – a partir das suas posturas identitárias
- entre o ser e o dever-ser com que o sujeito dá sentido ao ser aspirando a
tornar-se autor do seu destino e a que acresce a redução do sujeito à sua
dimensão individual. Contra o humanismo, emerge entretanto o niilismo, um
niilismo que atesta, porém e em todas as circunstâncias a perspectiva de um
sujeito que se esconde por detrás da representação que o nega e que ressurge,
afinal, nos próprios jogos e forças da dinâmica textual.
A
este propósito, interroga-se ainda Larochelle (op. cit., p. 32) se não seria melhor recusarmos todos os excessos
de certeza sobre a problemática do sujeito: tanto os que advêm do “pobre saber
da sua grandeza”, como ocorre no humanismo, como os que, numa óptica niilista,
proclamam o “grande saber da sua pobreza”. Para concretizar esta via superadora
explora então o nosso autor a via de um “sujeito fraco” – indexado mais a
uma função subjectivante do que a uma solução subjectiva - com o duplo estatuto
de autor e de agente, ou seja, entendendo-se o sujeito como uma entidade que, não
se reduzindo ao recurvamento sobre a sua interioridade e assim ao privilégio de
ser um eu absoluto, se identifica nas
interacções entre as suas posições e as situações por ele vividas, entre a
interioridade e a exterioridade, entre o que quer e o que o constrange.
Será
esta a maneira de se passar de uma ideologia da filosofia a uma filosofia crítica
da ideologia, a qual poderia marcar verdadeiramente a superação de uma
modernidade em que, com o fim da dúvida (filosófica), se instalou a
indubitabilidade (ideológica), em que a ideologia – e a sua rigidez
-acabou por culminar a filosofia (inviabilizando o saber problematológico
desta)? É que a ideologia marca finalmente a instalação do humanismo moderno, o
qual assenta justamente no reconhecimento e na promoção da excepcionalidade do
homem enquanto sede de um sujeito soberano e na concomitante delimitação e
fragilização do questionamento filosófico sob o peso do dogmatismo ideológico
protagonizado por um tal sujeito que assim escapa à interpelação daquele
questionamento. A dúvida hiperbólica, apogeu da radicalidade filosófica, ao
proporcionar o fim da própria dúvida, abre caminho à emergência e
institucionalização da ideologia entendida como discurso e prática de certezas,
nomeadamente na acção política.
Mas
o mais curioso é que a partir da modernidade, deixando de constituir o Cosmos
ou Deus expressões do Ser infinito em relação às quais o homem
privilegiadamente media e assumia a sua finitude, o homem se vê obrigado a
perceber-se, sobretudo, a partir dos seus próprios limites. Tal é claramente a óptica
kantiana na medida em que, para este filósofo, o sujeito se reporta apenas à
sua própria estrutura, reivindicando assim uma finitude radical. Esta percepção
é, contudo, algo contraditória já que, ao fazê-lo, ele se posiciona como
detentor dos limites das suas acções e, inclusive, dos seus pensamentos, o que
implica inclusive a constituição de uma ética assente nos pressupostos da sua
razão... Ora é aqui que o humanismo moderno ganha forma e força, fazendo do
homem, afinal, o seu fim absoluto na medida em que, para além dele, tende a não
haver qualquer outra referência que verdadeiramente o limite: o humanismo é,
finalmente, o movimento de criação - que se apresenta como de descoberta - do
homem por si e para si mesmo. Este, relativamente à resignação medieval de uma
finitude que se confrontava principalmente com a sua incomensurabilidade diante
da infinitude divina, vem mesmo a revelar-se como sendo capax infinitatis.
O homem, desde o renascimento, vai-se tornando assim senhor - ou construtor -
do seu destino pela prossecução de finalidades que a si mesmo atribui bem como
pelo cumprimento dos meios e etapas necessárias para o efeito. Esta atitude,
que se tornará heróica e revolucionária no séc. XVIII pela assunção plena da
relação política do projecto (antropológico) com o objecto (gnoseológico) -,ou
seja, da acção política com o conhecimento teórico, é antes disso
experimentada, dada a solidão que a envolve enquanto for sentida como perda da
subordinação ao transcendente, de um modo existencialmente pessimista, como o
foi no caso de Pascal.
A
crise contemporânea do humanismo e o pessimismo que dela também decorre exigem
uma refundação da antropologia filosófica a partir de limites que, emergindo do
humano, o ultrapassam. Trata-se agora de situar o humano relativamente ao que,
continuando apesar de tudo a ser humano, aparentemente o nega, ou seja, o
inumano ou o pós-humano, o que gera um novo sentimento existencial de solidão
que a ciência, por si, não consegue resolver…